Houve épocas, como em meados do primeiro milênio do cristianismo, em que povos inteiros se deslocaram, pondo a duras provas as estruturas do império romano e criando os pressupostos para uma nova fermentação cultural. O “descobrimento” de continentes novos, no início da era moderna, deu origem a uma nova onda de migrações, para a conquista e ocupação das terras, entre as quais, também o Brasil. A era industrial suscitou o êxodo rural para a formação das grandes concentrações urbanas, um processo ainda não concluído. Forçado ou livremente, fugindo de riscos ou ameaças, buscando novidades ou melhores condições de vida, o ser humano sempre migrou. Faz parte de sua constituição ontológica, pois é um ser à procura de satisfação, de superação de si mesmo, movido por uma saudade interior, quem sabe de quê, um peregrino nunca satisfeito com o lugar aonde já chegou.
Estudiosos do fenômeno estimam que no mundo, hoje, seriam mais de 200 milhões as pessoas em situação de migração! Deixam seus países, por escolha ou necessidade, fugindo de guerras, perseguições e desastres AM-bientais, ou da miséria e da fome. A globalização abateu muitas fronteiras, abriu novas perspectivas para o trabalho, facilitou a comunicação, a superação das distâncias e estimulou o deslocamento das pessoas. Também acontece no Brasil: ao mesmo tempo que continuamos a receber imigrantes, hoje cerca de 5 milhões de concidadãos vivem fora do país. Sem falar das migrações internas, estimuladas por vários fatores, sobretudo econômicos, e que levaram cerca de 30% dos brasileiros a colocarem o pé na estrada.
No entanto, no contexto da globalização, as migrações estão marcadas por uma série de contradições: ao mesmo tempo que despertam sonhos e a vontade de partir, as novas oportunidades criadas permanecem uma miragem e não estão ao alcance de todos; aumentou o desemprego, assim como a fome e a miséria, as tensões sociais e as guerras; cresceu a concentração da riqueza e se aprofundou ainda mais o abismo das desigualdades entre Norte e Sul do mundo; a sociedade eletrônica ignora fronteiras, mas a sociedade real levanta novos muros para se proteger contra as ameaças do novo; velhas formas de violência, de exploração da pessoa, até de escravidão, reapare-ceram, estimuladas pela perspectiva de tirar proveito da situação, de forma imoral; a nova mistura de povos e culturas também fez emergirem velhas fobias, preconceitos e racismos em relação aos migrantes e estrangeiros, considerados uma ameaça ou, simplesmente, indesejados. No Brasil, as migrações desgovernadas produziram o avanço sobre a natureza, a ocupação descontrolada do território, o inchaço das metrópoles.
Diante de uma realidade tão impressionante quanto envolvente, pois atinge praticamente todos os países, ainda não há uma atitude adequada dos governos e da comunidade internacional. O fato migratório é deixado, sobre-tudo, à iniciativa e à liberdade pessoal: cada um migra se quiser, vai para onde desejar, procura o que lhe interessar. No entanto, o fenômeno e suas conse-qüências não são apenas individuais; o fluxo migratório é estimulado por enormes interesses econômicos e, muitas vezes, “governado” por organiza-ções criminosas, que não hesitam em traficar com seres humanos, expondo-os à insegurança total, como acontece com os clandestinos abandonados nas fronteiras, ou em navios à deriva, depois de terem sido explorados econo-micamente; ou quando conseguem atravessar a fronteira, são mantidos em regime de semi-escravidão. Os direitos humanos são violados sem piedade.
No contexto atual da comunidade humana as pessoas, geralmente, migram por necessidade, bem mais que pelo prazer de migrar. Há uma realidade inegável: a riqueza, o conforto, as oportunidades e perspectivas de vida melhor estão muito concentradas em alguns países ou, dentro deles, em algumas áreas. E é para lá que o povo quer ir. Quando o pão falta nalgum lugar, as pessoas saem à sua procura e batem à porta de quem o tem em abundância. Se as portas não se abrirem, o desejo de entrar, a necessidade e a fome levam a forçar as portas ou a pular os muros, para chegar lá... Nem as políticas repressivas da imigração clandestina conseguem evitar o problema das migrações e até o agravam com novos ingredientes. Nosso mundo globalizado precisa encarar isso com realismo e grandeza de alma.
Também o papa Bento XVI, na encíclica Caritas in veritate, referiu-se às migrações do mundo contemporâneo: “Um fenômeno impressionante pela quantidade de pessoas envolvidas, pelas problemáticas sociais, econômicas, políticas, culturais e religiosas que levanta, pelos desafios dramáticos que coloca à comunidade nacional e internacional” (n. 62). A responsabilidade pela administração adequada desse fato social e humano epocal, de dimensões imensas e complexas, não pode ser descarregada nas costas, muitas vezes frágeis, dos países de origem dos migrantes, mas requer uma forte e clarividente política de cooperação internacional, bem como a estreita colaboração entre as comunidades de onde partem e os países que recebem os fluxos de migratórios.
Nenhum país está em condições de enfrentar sozinho esse; por isso, papa pede que sejam feitas normas internacionais capazes de harmonizar os diversos sistemas legislativos, para salvaguardar as exigências e os direitos das pessoas e das famílias emigradas e, ao mesmo tempo, das sociedades de chegada dos emigrantes. Os trabalhadores imigrados não podem ser tratados, simplesmente, como peças do jogo econômico e seria indigno e desumano reservar-lhes o tratamento dado a qualquer “fator de produção”: são pessoas humanas, com dignidade e direitos fundamentais inalienáveis, que devem ser respeitados sempre (cf. n. 62).
Vem-me à memória o texto do Evangelho de São Lucas, que fala do nascimento de Jesus: César Augusto havia ordenado um recenseamento em todo o império romano e cada família tinha que se deslocar para seu lugar de origem, para se inscrever nas listas de controle da população. José e Maria, grávida de 9 meses, também tiveram que se deslocar de Nazaré para Belém, de onde eram originários. Não era turismo, mas migração forçada. Ordens do grande imperador. Chegando a Belém, não houve quem os acolhesse: “não havia lugar para eles”, e o menino nasceu num abrigo para animais (cf Lc 2,6-7). A Igreja nos recorda que também hoje, na pessoa dos migrantes, Ele continua a vir ao nosso encontro e, um dia, poderá nos surpreender com este convite: “o forasteiro era eu, e tu me acolheste. Agora vem, sê bem-vindo à casa do teu Senhor!” (cf. Mt 25,35).
Palavras boas de serem lembradas no tempo do Natal.
21 de Dezembro de 2009
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